sexta-feira, 7 de julho de 2023

INATURALIST E O CURRÍCULO MANCHADO PELO DESRESPEITO AOS DIREITOS RESERVADOS

Ilustração produzida a partir de imagens livres de Pixabay (RiaKartika, sogard, GDJ)


INATURALIST E O CURRÍCULO MANCHADO PELO DESRESPEITO AOS DIREITOS RESERVADOS

Por Maristela Zamoner

Meus registros no iNaturalist são, na sua integralidade, configurados sem  nenhuma licença de uso, com todos os direitos reservados, portanto, o uso de fotografias, sons e dados são proibidos sem minha expressa autorização e citação de autoria. Já recebi críticas por isso, de pessoas que desejavam fazer uso de resultados sem precisar solicitar autorização. Então, vale uma boa explicação da razão desta escolha. 

Quando publicamos no iNaturalist com a sua configuração padrão, reconhecida pela sigla "BY-NC", autorizamos outras pessoas a usarem nossos resultados de forma não comercial, embora com o dever de citar o autor. Isto significa, resumindo, que assim você autoriza o uso de seus dados, suas fotografias, seus sons e o que mais você acrescentar, sem a necessidade nem mesmo de ser informado sobre como e para que fins este uso do seu trabalho será feito, desde que, basicamente, seu nome seja citado e este uso não seja comercial. E mais do que isso, com esta configuração padrão, você autoriza o automático compartilhamento dos dados que produziu no Global Biodiversity Information Facility, o GBIF, uma organização internacional que se dedica a disponibilizar dados científicos de biodiversidade pela internet. E a política de direitos autorais desta entidade admite o uso de dados sem créditos autorais. 

No iNaturalist encontramos a orientação expressa a quem quer fazer uso de qualquer conteúdo das observações ali publicadas, para citar o nome dos autores. Esta orientação se direciona a duas distintas circunstâncias. A primeira é quando o volume de dados utilizados estiver em torno de 10 publicações, ou observações. A segunda é quando se tratam de dados que não estão compartilhados no GBIF. 

Todas as alternativas de licenças admitem algum tipo de uso sem que você seja informado previamente. Então, a forma de proteger nossas publicações contra usos que desconhecemos e da perda de direitos de citação pelo compartilhamento no GBIF, é configurá-las, todas, "sem licenças", reservando todos os direitos a quem arcou com custos intelectuais e econômicos da sua produção.  E isto pode ser feito acessando: 1 - Configurações da conta; 2 - Conteúdo & Exibição; 3 - Em "Licenciando", fazendo a marcação em todas as três opções, "Licença padrão para suas observações", "Licença padrão para suas fotos" e "Licença padrão para sons", da última opção na qual aparece: "Sem licenças (todos os direitos reservados)". Note que isto protege não somente fotografias e sons como todos os conteúdos das suas observações, ou seja, todos os seus dados, resultados e conclusões. Assim você consegue cuidar do uso que pode ser feito do conteúdo que produziu, o seu conteúdo, exceto naquilo que diz respeito aos direitos concedidos ao iNaturalist em seus Termos de Serviço. E o iNaturalist usa seus dados, por exemplo, para produzir informações resultantes de compilados massivos, como gráficos ou mapas e  suas fotografias para a alimentação de algoritmos de inteligência artificial que ajudam a aprimorar os processos de identificações automáticas de espécies. 

Então alguém que deseja usar o que você produziu pode questionar seu posicionamento de reservar todos os direitos, alegando que você não quer que sua produção contribua com o conhecimento sobre a biodiversidade. Mas não se deixe impressionar por este argumento, pois ele não é verdadeiro. Primeiro porque sua publicação no iNaturalist está em acesso aberto e isso por si só já é contribuição para o conhecimento. Segundo, como acesso aberto não é sinônimo de qualquer uso liberado, basta que quem tem o desejo de fazer uso do seu trabalho, solicite a sua autorização. Então você avalia se o uso será ou não compatível com seus valores e decide por autorizar ou não. E mais, sua produção é importante contribuição para o aprimoramento continuado das identificações automáticas de espécies. Então você pode resistir sem peso de consciência a este assédio.

Sim, sofremos assédio e pressão, de pessoas que não alcançam por si os resultados que alcançamos e querem fazer uso do que produzimos em seus nomes, sem precisar nos solicitar, nem informar e nem atribuir crédito a autoria original. E este assédio inclui críticas à ciência cidadã e seus métodos independentes, à produção de quem publica em plataformas de ciência cidadã sem se subordinar antes a um cientista profissional, ao fato de que reservamos todos os direitos sobre nossos dados e fotografias tornando usos não consentidos criminosos, e sofremos ainda abusos, como o de simplesmente se apropriarem de nossa produção publicando em seus nomes, sem que sejamos sequer citados nominalmente. Configurar todos os direitos reservados é apenas uma defesa neste cenário, uma tentativa ter um uso justo do que fazemos com tanta dedicação.

E é aqui que surge o argumento de que não adianta publicar no iNaturalist "sem licença" nenhuma, porque mesmo assim aqueles que deveriam ser as maiores referências de ética científica da sociedade, simplesmente se apropriam sem consentimento do que produzimos, apagando nossos nomes. E este argumento até tem razão de ser. Só no meu caso, que tenho a integralidade das minhas publicações no iNaturalist sem nenhuma licença de uso, já sofri uso de fotografias não autorizadas em livro publicado por pesquisadores e vendido na Europa com crédito incorreto, em sites de divulgação científica, em diversas formas de publicação e até de dezenas de dados inéditos, repito, sem nenhuma licença de uso, usados em listas de espécies com propósito de inventariamento, sem meu consentimento e sem nem a atribuição do devido crédito autoral. E não sou a única vítima deste tipo de abuso, muitos dos colegas de observação de biodiversidade relatam que seus direitos autorais são violados de diferentes formas. 

Mas é aqui que, mesmo vitimados, precisamos serenidade e confiança. Trabalhos, quaisquer que sejam, por quem quer que sejam feitos, que usam conteúdos sem licença, sem consentimento e sem nem os créditos aos autores legítimos, são prova, em si mesmos, de má conduta. E seus autores pesquisadores se revelam para a sociedade, no seu próprio fazer científico, como o são seus atos: abusivos, desumanos e até criminosos. São precioso exemplo do que a sociedade não deseja para a ciência. 

Quando falamos de conteúdos produzidos no Brasil, por brasileiros, usados indevidamente por brasileiros no Brasil, em publicações brasileiras, vale a nossa lei no. 9.610 de 1998, de direitos autorais, que, conforme a convenção de Berna da qual o Brasil é signatário, estabelece como direito moral do autor o de ter sua autoria reconhecida por seu nome, pseudônimo ou apelido (Art. 24, II). A violação de direitos morais neste caso tem previsão no Código Penal, Art. 184, e entre as punições ali previstas, está a detenção do criminoso de três meses a um ano. E constatamos pesquisadores se esquivarem do risco de punição prevista em lei, inviabilizando a defesa das vítimas, pelo recurso da inexatidão metodológica. Um exemplo é quando estes atores citam apenas a plataforma de ciência cidadã enquanto escondem os conteúdos e autores originais delas usados ao misturar indistintamente seus resultados com os de coleções científicas. Mas mesmo assim, a prova da má conduta científica do uso de conteúdos sem a citação de seus autores, passíveis ou não de identificação, permanecerá irreversivelmente manchando seu histórico de cientista. E esta mancha na carreira não deixa de ser uma forma de punição deontológica em defesa das vítimas, que foi assegurada de forma prévia justamente pela configuração dos conteúdos usados, com todos os direitos reservados. 

As plataformas de ciência cidadã ainda são algo novo no mundo da ciência, e funcionam de maneira muito diferente dos ambientes tradicionais nos quais os cientistas tinham todo o poder sobre dados primários e a segurança das portas fechadas para fazer seu uso. No ambiente do iNaturalist os dados não são primários, então não é possível usar indevidamente suas publicações, sem consequências para a credibilidade de quem faz esse uso. 

Serão necessários muitos erros, muitos abusos e um bom tempo de adaptação a esta nova forma transparente e participativa de fazer ciência, até que o respeito se torne o único caminho, se não pelo desejo de agir eticamente, por não se querer o currículo manchado irreversivelmente pela má conduta científica. 

O lado positivo de tudo isso é que apesar desses exemplos desumanos, já existem profissionais sérios, que fazem contato, solicitam uso e realizam suas publicações incluindo o que nós produzimos, de maneira limpa, bem identificada, transparente, e fazendo questão de citar todos os nomes dos autores originais. Alguns até têm a generosidade de nos convidar a parcerias na autoria de artigos que incluem nossos resultados. São pessoas que poderiam estar se aproveitando de suas posições encasteladas em instituições científicas tradicionais para justificar abusos, mas escolheram por conta própria simplesmente reconhecer e respeitar o valor da ciência cidadã. Estes são os cientistas profissionais capazes de alimentar nossas esperanças. Afinal, são eles que, mesmo em poucos, se apresentam para a sociedade como verdadeiros exemplos da conduta científica ética que almejamos. São eles que, inevitavelmente, ocuparão a posição de referência lúcida, altruísta e digna para o futuro da salutar e produtiva relação entre a ciência cidadã e a profissional.

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