Por Maristela Zamoner
Por mais incoerente que possa parecer, existem profissionais que defendem o uso de conteúdos de plataformas de biodiversidade, sem a citação dos autores originais. Não só defendem, como fazem. Isto ocorre em publicações desumanas, enquanto, por outro lado, os periódicos científicos mais sérios já exigem para submissões que usam dados desses conteúdos, não só a citação de autores originais, como sua autorização. Por isso é necessário abrir esta discussão com fundamento nas questões de direitos autorais nacionais e internacionais, de ética e dos interesses dos atores científicos envolvidos.
Embora existam casos nos quais se perceba um
cuidado ético, é inegável o aumento voraz de exemplos de má conduta científica
nesta seara. Isto abrange desde o uso ilegal, que atropela as definições de
copyright apontadas nas próprias plataformas de ciência cidadã, até o uso
antiético, que afronta os interesses dos autores originais. O problema
ético se torna inconteste quando observamos a reação de descontentamento de
vários cientistas cidadãos vitimados por abusos sobre sua produção.
É aqui que a discussão não pode se furtar das reflexões:
1. O autor de plataforma de ciência cidadã quer que seu trabalho seja publicado em nome de outro, sem o crédito a autoria original?
2. Quando conteúdos de plataformas de ciência cidadã interessam ao ponto de serem usados em publicações profissionais, qual seria a razão para a exclusão proposital do nome do autor original?
A fim de propor uma abordagem inicial sobre esta
temática, pontuaremos aqui duas questões. A primeira trata de dois dos tipos de
publicações que podem ser obtidos em plataformas de ciência cidadã e
biodiversidade. A segunda, sobre o uso destas publicações por terceiros.
Sobre dois tipos de publicações em plataformas de
ciência cidadã
Quanto aos tipos de publicações em plataforma de
ciência cidadã, um deles é aquele feito por pessoas que apresentam resultados
de sua atuação científica, alcançados com empenho e recursos próprios. Cada uma
destas publicações têm um endereço eletrônico único, autor definido e um
conjunto de conteúdos intelectuais produzidos originalmente. Isto, em geral, abrange
a publicação de uma fotografia, ou de um som e, muito mais do que isto, dos vários
outros conteúdos indissociáveis, como local, data, equipamento utilizado e
conclusões de análises, entre elas, sobre o reconhecimento taxonômico. Estas
publicações também podem abranger a participação de outras pessoas no
aprimoramento dos resultados. Pessoas que discutem abertamente desde as identificações
de espécies até conteúdos de caráter ecológico ou mesmo ético, e o fazem no
lugar ético criado para isto, a plataforma.
A existência dos direitos autorais nestes casos, é
inquestionável e estabelece o sujeito que ali publica como legítimo AUTOR. As
próprias plataformas, em geral, apresentam claramente a configuração padrão destes
direitos, caracterizada sob o código CC-BY-NC, da seguinte forma:
“Você tem o
direito de:
Compartilhar
— copiar e redistribuir o material em qualquer suporte ou formato
Adaptar —
remixar, transformar, e criar a partir do material
O
licenciante não pode revogar estes direitos desde que você respeite os termos
da licença.
De acordo
com os termos seguintes:
Atribuição
— Você deve dar o crédito apropriado, prover um link para a licença e
indicar se mudanças foram feitas. Você deve fazê-lo em qualquer
circunstância razoável, mas de nenhuma maneira que sugira que o licenciante
apoia você ou o seu uso.
Não
Comercial — Você não pode usar o material para fins comerciais.
Sem restrições adicionais — Você não pode aplicar termos jurídicos ou medidas de caráter tecnológico que restrinjam legalmente outros de fazerem algo que a licença permita.”
Entretanto, embora esta seja a configuração padrão
de direitos autorais, é imperioso observar cada caso, pois muitos autores optam
por outro tipo de configuração para suas publicações, seja aumentando ou
reduzindo direitos de uso. Isto pode variar desde disponibilizar sua obra em
domínio público, até o estabelecer de TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. E com o
avanço de usos ilegais ou antiéticos nesta área, é crescente o número de
pessoas que publicam em plataformas de ciência cidadã configurando TODOS OS
DIREITOS RESERVADOS.
Um outro tipo de publicação abrange conteúdos
produzidos pelas próprias plataformas de ciência cidadã, com base no primeiro
tipo e conforme seus termos de uso. Um bom exemplo, são os mapas com os pontos
dos diversos registros de biodiversidade. Este é um tipo de resultado ali
publicado, que não foi produzido diretamente pelos autores, mas pelas
plataformas em si. Então, são da autoria da plataforma, com autorização dos
autores cujos dados foram utilizados. Algumas plataformas geram gráficos e
outros resultados de análises coletivas, que também são de sua autoria.
Como usar publicações de plataformas de ciência
cidadã
A Dra. Gisele Truzzi, especialista em Direito Digital
orienta em seu artigo “Direitos autorais e internet: como usar conteúdo de
terceiros sem problemas”, que para um uso correto é necessário atentar a alguns
pontos. A primeira orientação da especialista é: “Observar se há referência
específica a algum tipo de licença ou a menção de "direitos autorais
reservados"”. E as maiores plataformas de ciência cidadã apresentam o tipo
de licença em todas as suas publicações. A segunda orientação é “Constatado em
que local o conteúdo está hospedado e nome do autor, não havendo vedações para
o uso desejado, cite a fonte (link exato e data de acesso) e mencione o autor
corretamente.” A autora finaliza com maestria: “Portanto, tenha muita atenção
ao utilizar materiais de terceiros para criação de seu conteúdo. Verifique as
condições permitidas pelo autor para seu uso, faça as devidas menções aos
créditos e à fonte; solicite autorização específica caso necessite. Assim você
evitará problemas, constrangimentos e infrações legais. Afinal, ninguém quer
ser lembrado por plágio, mas, sim, pelo conteúdo original que criou.”
Como vimos, é possível usar uma publicação de
plataforma de ciência cidadã com configuração padrão de direitos autorais,
desde que se atribua o crédito da autoria de forma apropriada. E mais, não pode
haver uso comercial, por exemplo usando a publicação em um livro que será
vendido ou em um periódico científico que será explorado comercialmente. Além
da configuração internacional de copyright que as plataformas de ciência cidadã
atribuem às publicações ali feitas pelos autores, as publicações autorais
produzidas no Brasil são protegidas também pela Lei 9610/98, cujo Art. 24
estabelece como direito do autor: II
- o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado,
como sendo o do autor, na utilização de sua obra;
O uso ético de cada tipo de publicação das plataformas
de ciência cidadã deve seguir um padrão bem conhecido no ambiente científico
tradicional, que preconiza a citação do seu autor e data de publicação com a
inclusão das informações básicas da publicação toda nas referências
bibliográficas, ou outro elenco de similar finalidade. Nesta lista de obras
utilizadas, em geral apresentada ao final da publicação, cada item referenciado
é composto, no mínimo, por AUTOR, TITULO DA PUBLICAÇÃO, VEÍCULO DE PUBLICAÇÃO E
DATA. A ordem e forma destes elementos mínimos depende da norma adotada, mas devem
ser apresentados quando falamos em um uso metodologicamente correto de qualquer
fonte. Como vimos, todos estes elementos existem em cada uma das publicações
feitas por seus autores nas maiores plataformas de ciência cidadã, não falta
nada para que sejam devidamente citados. No caso de publicações geradas pela
plataforma, cabe a citação da própria plataforma como autora, com as
referências incluindo os demais elementos citados.
A própria plataforma iNaturalist orienta que o uso de suas publicações deve ser feito com a devida citação: “[Observer name]. [year of posting to iNaturalist]. iNaturalist observation: [url for observation]. Accessed on [date of access]” (https://www.inaturalist.org/pages/help#science1). Estão entre as que devem ter sua autoria citada nominalmente em qualquer circunstância de uso, independente das quantidades de dados abrangidos, de quem faz esse uso e para quais finalidades, as publicações configuradas no iNaturalist com “Todos os direitos reservados”. Os conteúdos destas publicações não se integram automaticamente ao GBIF - Global Biodiversity Information Facility que, conforme suas políticas, admite usos em quantidades com citação coletiva. Justamente por isso, cresce a cada dia o número de pessoas que define "Todos os direitos reservados" como configuração para as publicações de suas produções nesta plataforma.
Quando um profissional faz uso das publicações de
plataformas de biodiversidade para construção de listas de espécies, ou
inventários publicados em seu nome, precisa cuidado extra. Listas de espécies
são de destacado interesse para cientistas cidadãos, logo, a questão ética
aprofunda sua relevância. Quando uma espécie está na lista em função de uma ou
mais publicações obtidas apenas em plataformas de ciência cidadã, seus autores
devem ser citados, ou, ao menos, o autor do primeiro registro. A exclusão do nome deste
autor, além de erro científico grosseiro que resulta em ciência de baixa
qualidade, é antiética e desumana por afrontar algo importante para os detentores dos direitos
autorais originais.
Lembremos que uma publicação em plataforma de
ciência cidadã não tem o mesmo caráter jurídico de um exemplar de biodiversidade
coletado e tombado em uma coleção. Enquanto este último tem um coletor, o
primeiro tem um autor de obra intelectual protegida, que detém direitos
autorais. Quando se publicam listas de espécies com base em conteúdos de uma
coleção científica, cada espécie listada tem um coletor. Quando uma espécie de
determinada lista tem origem em um registro publicado em plataforma de
biodiversidade, tem um autor. Juridicamente, coletor é diferente de autor. Autores
têm direitos autorais protegidos por lei e pela convenção internacional de
Berna, da qual o Brasil é signatário. Coletores não são autores do ponto de
vista legal. Os direitos de autor são irrenunciáveis (Art. 27, Lei 9.610/98).
Isso significa que nem o próprio autor pode renunciar ao direito de crédito da autoria
daquilo que produziu.
Nem usos de grandes quantidades de publicações
destas plataformas são justificativas aceitáveis para omissão proposital dos
autores. Uma vez que o interesse em usar a propriedade intelectual que não lhe
pertence é do profissional, é este último, e o respectivo veículo de publicação,
que devem encontrar soluções éticas para viabilizar o que desejam a fim de
atingir seus objetivos. Usar produção de conteúdo autoral sem atribuir crédito,
além de não ser aceitável, pode ainda se constituir violação de direitos
autorais, portanto, crime. No Brasil a violação de direitos autorais é prevista
no Código Penal sob pena que inclui até a detenção do criminoso.
É fato que cientistas profissionais aumentam
vantagens salariais, benefícios para suas carreiras, facilidades de acesso a
recursos relacionados à prática científica, conforme crescem os números de
publicações em seus currículos. Este mecanismo todo, muitas vezes referido como
produtivismo científico, tem sido alvo de críticas procedentes. É também
apontado como responsável pelo crescimento mundial das retratações de artigos científicos
por fraudes e má conduta científica. Nem as mais conceituadas revistas do
planeta têm escapado desta realidade ao sofrer estas retratações. Uma vez que o
sistema prevê aumentos de remuneração com certa proporcionalidade aos aumentos
de publicações, é esperado que cientistas profissionais tenham muito interesse
em publicar cada vez mais e mais rápido. Antes um cientista profissional
precisava empenhar tempo na coleta de dados originais. Agora, vê nas
plataformas de ciência cidadã uma forma de encurtar este caminho usando o que
outros produziram. A questão é que a atuação deste cientista cidadão aqui em
tela, não é de um coletor de dados, muito menos a serviço dos interesses de um
profissional cujo avanço na carreira depende de encorpar currículos. O que este
cientista cidadão faz, como já discutido, é fruto de um trabalho intelectual autoral,
original, integral e independente.
É preciso enfrentar com realismo o fato de que interesses destes cientistas cidadãos não coincidem com interesses destes
cientistas profissionais. Cientistas cidadãos pagam para fazer suas
publicações. Seus interesses são muito diferentes daqueles de um cientista
profissional que recebe para fazer ciência, e potencialmente recebe mais quando
publica mais. Se o segundo quer fazer uso da produção do primeiro para encurtar
o caminho a fim de alcançar seus objetivos, é razoável que haja humanidade, respeito às
leis, à ética e aos interesses dos autores originais.
Uma casa de vidro transparente não é autorização
para que quem quiser se aproprie de forma não consentida do que há nela. E as
plataformas de ciência cidadã são casa que abriga propriedade intelectual de
milhares de cientistas cidadãos. Se o uso de seus conteúdos fosse totalmente
livre, não haveria a configuração padrão de copyright que há. Nossos
dicionários atribuem termos para o ato de se apropriar de forma não consentida
de algo que é de outro, e estes termos não condizem com a boa caminhada científica.
No meio destas duas formas de fazer ciência,
profissional e cidadã, há algo em comum que pode ser um universo de
possibilidades saudáveis para todos. A atuação conjunta destes dois atores da
ciência, em equilíbrio e igualdade, respeitando interesses e necessidades de
ambos, pode ser muito promissora para o conhecimento da biodiversidade.
Felizmente as primeiras empreitadas exemplares de cientistas profissionais já
começam a surgir, como uma joia rara. São publicações que citam todos os nomes
de cientistas cidadãos que tiveram seus trabalhos ali usados. Isso revela respeito humano básico, qualidade científica e ética. Em determinados casos, quando a produção de
cientistas cidadãos foi determinante para o artigo produzido por iniciativa de
um profissional, a autoria chega a ser conjunta. Este é um tipo de exemplo que
deve inspirar empenhos científicos atuais e futuros. É caminhada humana, ética, limpa, honesta,
que valoriza a ciência cidadã como merece e atribui a seriedade necessária à
ciência como um todo.
Fonte citada: Truzzi, Gisele. Direitos autorais e
internet: como usar conteúdo de terceiros sem problemas. Plataforma Consultor
Jurídico, CONJUR. 24 de agosto de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-24/gisele-truzzi-direitos-autorais-internet
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