quarta-feira, 14 de junho de 2023

Cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã não é cientista de fato?




Cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã não é cientista de fato?


Bióloga Maristela Zamoner

14 de junho de 2023


Nos últimos anos o debate sobre o significado de expressões como ciência aberta e ciência cidadã se intensificaram muito. Seus diferentes conceitos abrangem profundas discussões e um novo universo deste conhecimento começa a se construir.

Aqui faremos um recorte, concentrado na atuação de um perfil específico de cientista que faz publicações consistentes em plataformas de ciência cidadã e biodiversidade. Este recorte se justifica por vários motivos. Entre eles, por terem sido estas plataformas que permitiram a qualquer interessado, o pleno desempenho das atividades científicas com autonomia e independência, providenciando uma oportunidade livre de inclusão científica nunca vista antes. Estas iniciativas protagonizam de forma brilhante a discussão aqui proposta.

Vejamos mais analiticamente como este perfil de cientista cidadão conduz sua jornada científica e um pouco da ética do uso de suas publicações por cientistas profissionais.

Primeiramente, este cientista cidadão que publica em plataformas de ciência cidadã, em geral, não tem vínculo institucional e o que faz, salvo poucas exceções, não é remunerado. Os termos que fazem referência a este cientista envolvem a palavra “OBSERVAÇÃO” e o exemplo mais conhecido talvez seja do “observador de aves”. Naturalmente, não para por aí. Além de observar, este ator da ciência faz LEVANTAMENTO DOS DADOS de registros feitos por outros observadores. Participa de debates sobre o grupo da biodiversidade no qual se especializou e faz leituras, mesmo de textos científicos. Ele compreende bem as características dos seres que estuda, e entre tantos outros aspectos, sua biogeografia. Ele é capaz de reconhecer uma espécie inédita ou nova para as localidades de interesse, um comportamento atípico ou de destacada importância entre outras questões características do grupo da biodiversidade no qual se especializou.

Segue sua jornada fazendo QUESTIONAMENTO sobre o que observa e lê. Ele adquire material bibliográfico, lê, faz suposições e cria HIPÓTESES envolvendo suas curiosidades. Estas hipóteses podem ser, por exemplo: “Será que naquele local existem outras espécies além destas já conhecidas/publicadas?”, ou “Será possível fotografar as espécies que outros já registraram lá?”. Com base em suas hipóteses, ele define o que fará e como. Sozinho ou em grupo, escolhe locais, as vezes empreende viagens e expedições e não raro adquire equipamentos especiais para os registros que deseja realizar, entre outras iniciativas. Sabe exatamente como realizar as ações necessárias para sanar suas curiosidades. Ele desenvolve assim, a METODOLOGIA que vai aplicar para responder a cada hipótese que formulou.

Vai a campo e volta com seus equipamentos cheios de fotografias, capturas de sons ou outros registros de seu interesse. Na sequência ele tem um grande prazer na ANÁLISE de cada dado que coletou, que obteve em sua EXPERIMENTAÇÃO de campo. Como conhecedor daqueles grupos, ele inicia sua REVISÃO, reconhecendo espécies, consultando bibliografias, bancos de dados de biodiversidade, as vezes consultando outros cientistas, checando biogeografia, procurando registros da espécie feitos por outros cientistas no local ou nas proximidades que visitou, comparando o que encontrou em campo com o que outros obtiveram, abrangendo ainda o conhecimento já estabelecido pela literatura. Ele também conversa muito sobre o que encontrou com outros observadores, pede opiniões, debate detalhes e troca informações.

Assim ele chega a CONCLUSÕES sobre cada registro que fez. E então, tem a alegria de fazer a PUBLICAÇÃO dos resultados de suas revisões, metodologias, experimentações, produção e organização de dados, respostas a hipóteses, análises, trocas de informações, conclusões e tudo mais que envolveu sua caminhada até ali. Ele faz esta publicação em uma plataforma de ciência cidadã da sua escolha, por regra ao acesso aberto, para que o mundo tome conhecimento do que produziu. E ali está uma fotografia ou um som, mas também existem as informações sobre o método utilizado, incluindo até especificação do equipamento, data, georreferenciamento, autor da imagem, reconhecimento da espécie, anotações sobre o registro entre várias outras. Esta plataforma faz o papel de um JORNAL, ou de uma REVISTA de ciência cidadã, ao viabilizar o “tornar público” daquela legítima produção científica.

Agora percebemos que estamos falando de conteúdos científicos produzidos originalmente, passíveis de citação, posto que têm autor bem definido e veículo de publicação. Mas não termina assim. É lá, naquele jornal aberto que é a plataforma de ciência cidadã, que quaisquer outros cientistas têm o espaço próprio para a avaliação daquelas publicações, apontamento de novas análises possíveis e, conforme o caso, por exemplo, para proposição de aprimoramentos, inclusive nas identificações de espécies. A plataforma na qual as publicações deste cientista cidadão foram feitas é o local para esta livre e aberta REVISÃO POR PARES e este é o único local digno para esta atividade. Até porque é nele que deve acontecer qualquer correção e até mesmo RETRATAÇÃO das publicações, se comprovados embustes ou erros. Vemos que as plataformas de ciência cidadã e biodiversidade estão desempenhando o papel de um JORNAL científico, se aprimorando em tempo real, ganhando qualidade, confiabilidade, consistência, força, poder de ampla indexação de conteúdos, especialização em identificações de espécies e volume de conhecimento gerado, que a humanidade ainda não tinha tido a oportunidade de experimentar. Isso precisa ser respeitado, o que significa não tirar informações dali sem autorização, não fazer revisões fora destes ambientes sem retornar nada a eles, não realizar publicações que usem estes conteúdos desvinculando seus legítimos autores. Isso é ético, é justo.

É nesta esteira que o cientista cidadão deste perfil dedica tempo de vida, acrescentando conhecimento novo, legítimo e inédito para a ciência, conforme seus interesses que incluem uma atuação cientificamente completa, livre, autodidata, autônoma e independente. Não podemos tratar suas publicações como “dado coletado” que aguarda alguém outro usar em seu nome e para seus fins. Isso seria menosprezar e discriminar um trabalho muito mais elaborado que exigiu empenho intelectual, recursos privados e atuação da plataforma que viabiliza e modera a publicação. Inclusive é necessário reforçar que esta produção abrange obra fotográfica ou sonográfica, cujos direitos autorais são protegidos nacional e internacionalmente.

Ao longo dos anos, este cientista executa repetidamente todas as etapas do método científico necessárias ao fazer científico do seu interesse, promovendo aprimoramentos, melhorando seus métodos e resultados. Isto permite a construção de uma lista de tudo que produziu, que ele chama de life list, algo especialmente relevante para seus interesses. Esta lista é como o CURRÍCULO deste observador da natureza. Assim ele segue acrescentando conhecimento novo, legítimo e inédito para a ciência.

Quando temos compreensão genuína sobre metodologia científica, precisamos ser imparciais o suficiente para reconhecê-la nesta forma independente de fazer ciência. Precisamos admitir que este cientista cidadão realiza plenamente, ao seu modo, todas as etapas do método científico necessárias ao que produz. E isso fica mais difícil de negar quando vemos a cada dia suas publicações interessando mais e mais cientistas profissionais que desejam usá-las. E em uma caminhada ética a concretização deste uso, além de muito saudável, tem potencial de trazer mais resultados em parcerias respeitosamente constituídas.

Nesta realidade já estabelecida, as plataformas de biodiversidade precisam ser vistas com destaque no cenário desta ciência cidadã, ou desta ciência aberta. Estas iniciativas tornaram possível a integralidade da prática científica sem discriminação de vínculo institucional ou de escolaridade, tornando a inclusão científica uma realidade inegável. Elas protagonizam a viabilização da autonomia científica de qualquer interessado, ampliando imensamente o potencial da produção científica mundial.

Por tudo isto, plataformas de ciência cidadã não podem ser vistas como mais uma estratégia que coloca o cientista cidadão na posição de voluntário coletor de dados para outros que gostariam de publicá-los em seus nomes, estratégia que não tem nada de errado, mas é outra. Esta postura extrativista nestes casos, provoca um afastamento entre estes cientistas cidadãos autônomos e cientistas profissionais. E este afastamento é positivo para a sociedade?

A parceria equilibrada entre estes dois atores científicos é muito promissora, desde que ambos sejam beneficiados e tratados como iguais no todo daquilo que se pretende realizar unindo suas ações e resultados. Colocar esta produção do cientista cidadão deste perfil como colaboração subordinada ao cientista profissional, na posição de dados coletados voluntariamente, é uma forma de menosprezo ao seu trabalho, discriminação do seu papel científico, e também é forma de dominação, que não tem razão para se estabelecer. Este cientista cidadão é independente e não tem interesse em simplesmente se submeter entregando a sua obra para outro assinar. Isso é a realidade e não podemos fechar os olhos para ela, muito menos tentar remoldá-la segundo interesses de formatos profissionais. Desrespeitar ou discriminar neste cenário, é desperdiçar uma oportunidade incrível de ver ciência cidadã, ou ciência aberta, e ciência profissional trabalharem em parceria justa, em igualdade, gerando mais resultados importantes para a sociedade.

Cientistas cidadãos que atuam de forma independente e autônoma, construindo suas life lists, são líderes e executores na integralidade de seus próprios projetos de ciência cidadã. De qualquer forma seguirão fazendo sua ciência livremente, conforme seus interesses, produzindo resultados legítimos, cada vez mais organizados, elaborados, qualificados e inegáveis.

Este cientista cidadão quer muito pouco em troca do que faz, reconhecimento da autoria é uma das coisas elementares e éticas que espera, figurar como coautor de toda obra que sem sua produção se descaracterizaria é outra. E cabe lembrar que a cada ano somam-se mais destes cientistas cidadãos, que já são milhares.

Por sua vez, o cientista profissional não é financiador deste cientista cidadão. Mas o inverso, em geral, é verdadeiro. Esta realidade precisa compor o debate sobre esta ciência cidadã, ciência aberta ou qual seja o nome que se venha a definir. Se queremos que a ciência, no fim, seja uma só, composta harmonicamente por diversidade de cientistas e fazeres, precisamos reconhecer e respeitar a autonomia deste cientista cidadão e seus direitos como autor.

Por fim, agradeço especialmente aos observadores de aves e borboletas por tudo que me ensinaram na prática, e ao longo dos anos ímpares de convivência. Uma das lições importantes foi que este perfil de cientista cidadão é pleno, autêntico, autônomo, independente, produtor de ciência legítima, de alta qualidade, digna de reconhecimento e respeito por parte de toda a sociedade. Muito mais do que aquele que se apropria indevidamente do que não é seu, este cientista cidadão é cientista de fato. 

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