Pelos biólogos Deni Lineu Schwartz Filho e Maristela Zamoner
As plataformas de ciência cidadã crescem exponencialmente tanto em registros de biodiversidade quanto em cientistas participantes. Destacam-se os cidadãos que as alimentam, e as vezes encontram ali sua única forma de inclusão científica.
É neste cenário que cada vez mais pessoas se interessam pelos conteúdos destas plataformas. Alguns participam respeitosa e generosamente, contribuindo com registros ou discussões sobre identificações de espécies. Isso favorece a eficiência de toda a rede, trazendo transparência e democratização científicas nunca vistas antes. Há quem se restrinja a assistir esta transformação que vem ocorrendo na sociedade.
Outros recolhem dados dali para suas produções que em algum momento serão adicionadas a seus currículos, servindo para reforçar e ampliar vantagens acadêmicas, melhorias salariais ou mesmo para afirmar posições perante colegas. Entre estes, alguns olham com respeito para os que empenham esforços pessoais alimentando estas plataformas, e de fato os inserem de forma justa e honesta nos processos de produção científica de seu interesse. Outros, porém, extraem silenciosamente informações destas plataformas, as publicam em seus nomes e nem ao menos atribuem a autoria aos legítimos autores. E assim começa a predação das plataformas de ciência cidadã.
É aqui que na área da biodiversidade precisamos diferenciar com muita clareza a natureza jurídica de um exemplar de biodiversidade coletado, tombado em uma coleção científica, de um registro fotográfico e seus dados publicados em uma plataforma de ciência cidadã. Enquanto um coletor de um exemplar físico de biodiversidade não tem o direito autoral sobre esta coleta resguardado em legislação própria, quem fotografa biodiversidade tem.
A Lei no. 9.610 de 1998 é objetiva ao definir em seu artigo 7º que fotografias são obras intelectuais protegidas. Metadados de local e data, por exemplo, são parte integrante da obra fotográfica. O artigo 28 é claro: “cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra (...)”. Segue-se o artigo 29 afirmando que “Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades”. Portanto, registros feitos por cientistas cidadãos são obras intelectuais de suas propriedades e ninguém pode usá-las sem autorização expressa. Diferindo de um bicho coletado que não tem autor, tem coletor.
A coleção de informações sobre os registros de cada autor é sua base de dados, que também está protegida pela mesma lei. Mas mais importante que isso é o fato de que a inserção de registros na plataforma é uma maneira de torná-los públicos. Uma vez publicados, podem ser citados em publicações de outras pessoas, com a natural atribuição da autoria. Isso deixa claro que o acesso aberto não é sinônimo de autorização para uso do que ali está publicado sem crédito de autoria.
Já é tempo para o cientista cidadão entender que não é uma honra ter seu trabalho usado sem nenhuma contrapartida, só porque quem fez esse uso é uma notória autoridade científica profissional ou outrem ovacionado em certos redutos. Não é uma honra, é um abuso.
Nós que publicamos nossas obras intelectuais fotográficas e bases de dados em plataformas de ciência cidadã, estamos sendo SAQUEADOS por pessoas que não respeitam nossos direitos autorais, que atropelam a lei e a ética científica. Em certos casos estas pessoas nem ao menos colaboram com a fonte da qual tiram proveito. Poderiam fazê-lo, por exemplo, contribuindo com registros ou discussões sobre identificações de espécies. Mas apenas pegam para si a produção de outras pessoas que ali colaboram voluntariamente, sem entregar nada em troca.
Chegamos a constatar a publicação de listas de espécies ou inventários que elencam táxons sem informar quais deles se originam de coleções científicas e quais de plataformas de ciência cidadã, mas afirmando que a lista é formada por ambas as categorias de fontes. Este tipo de apresentação de resultados é de pobreza científica, uma vez que não se pode reconhecer a origem dos dados e nem seus verdadeiros autores. Será que alguém acha mesmo correto tratar de forma igual, numa única lista, uma espécie cujo registro vem de um indivíduo tirado do ambiente e outra de um indivíduo que permaneceu nele? São fontes de informação que, do ponto de vista científico, não podem ser simplesmente misturadas como se fossem iguais. Será que isso teria o objetivo de inviabilizar a defesa das pessoas cujos direitos estão sendo violados? Ou seria ignorância sobre bases elementares da ciência?
Enquanto cientistas cidadãos pagam para fazer ciência, alguns tiram vantagem ao se apropriar indevidamente de seus resultados. E o fazem sem oferecer qualquer retorno. Em certos casos nem ao menos reconhecendo a autoria de dezenas de primeiros registros para localidades cujas espécies são listadas.
Quando se deseja usar o que não é sua propriedade, é necessário pedir autorização do autor. E quando não se está disposto a pedir autorização ao autor, e nem citá-lo, deve se restringir apenas ao que tem direito, ao que produziu com seu esforço e com seus recursos, assumindo a realidade quando seus resultados são incapazes de alcançar os de plataformas de ciência cidadã.
Mesmo que os conteúdos destas plataformas não estivessem protegidos em seus direitos, usá-los sem o devido crédito seria conduta que não condiz com os valores da ciência e nem da sociedade civilizada. Esse uso sem crédito viola ainda os princípios internacionais da ciência cidadã, publicados em 2015 pela Associação Europeia de Ciência Cidadã, que é a maior referência mundial atual nesta área.
Não tenho fé em nenhuma pessoa apenas por ser considerada por um grupo como mais importante que os outros. Ser autoridade em dada área para algumas pessoas, não a torna sinônimo de pessoa idônea. O que estamos vendo acontecer nas plataformas de ciência cidadã mostra bem isso. Um cientista cidadão que honra a ciência e sua ética é autoridade muito mais legítima do que qualquer outro que não preze por uma conduta austera.
Neste cenário de abusos concretizados, é uma boa recomendação para os alimentadores de plataformas de biodiversidade e ciência cidadã, que configurem restrição máxima de direitos em seus perfis e reforcem por escrito neles, que qualquer uso de dados só poderá ser feito com a autorização do legítimo autor.
É importante robustecer que a atitude torpe de se apropriar do que é de outro, diz muito mais sobre quem age assim do que as listas de feitos colecionados em seus currículos Lattes.
Esperamos que este artigo sirva de alerta para que publicações futuras não incorram nestas graves faltas éticas e científicas, e que cada dado tirado de publicações das plataformas de ciência cidadã seja sempre referenciado nominalmente em sua legítima autoria.
Por fim, é urgente a reflexão de todos os cientistas sobre as consequências nocivas de publicações que usam conteúdos de outros sem atribuição de autoria. Elas são prova eternizada da má conduta científica que desacredita a lisura da ciência perante a sociedade.
Nos solidarizamos com este nobre trabalho, que deve ser apoiado e respeitado, @todos os direitos reservados e respeitados.
ResponderExcluirMuito obrigada!
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